Não consigo me lembrar de um único filme adulto de natal que não gire em torno dos dolorosos encontros familiares. De relacionamentos problemáticos que encontram seu ápice na ceia, quando finalmente os personagens conseguem colocar pra fora todo o caos interno causado pelos anos de amarguras confinadas.
Esse azedume todo normalmente vem de forma bem suave, nos comentários risonhos (também chamados “alfinetadas”) sobre o excesso ou a falta de alguma coisa (filhos, parceiros, emprego, etc). São também trend topics das festas de final de ano os quilos que colecionamos e que ficam bem mais evidentes para aqueles que não nos veem há um bom tempo.
Eu tenho absoluta certeza de que quem fala tem boas intenções. Eu falo também. Afinal é tudo uma grande brincadeira, estamos em família e queremos o bem do outro. O que significa, a nosso ver (e lá de cima da nossa inteligência), vê-lo com mais ou menos filhos, namorados, empregos, quilos ou o que quer que nos pareça um bom negócio.
Esse ano nossos encontros foram diferentes, menores e possivelmente mais distantes dos comentários que machucam ou nos acalentam. Pelo sim e pelo não, acho interessante educarmo-nos a este respeito. Então lá vai um pouco do que pode ser útil para ceias vindouras.
1. Be kind, not Nice
Existe uma extensa bibliografia separando estes dois termos. Em inglês a batalha é entre ser “kind” (bondoso, gentil) e ser “nice” (legal). Apesar de parecidas, essas palavras significam coisas bem distintas. Podemos dizer, por exemplo, que uma camiseta é legal. Mas não faria sentido dizer que ela é bondosa ou gentil. Por aí já dá pra sacar que o segundo termo tem uma conotação moral.
Ser legal é bem mais fácil. É quando evitamos falar algo, porque sabemos que é inconveniente e poderá criar uma saia justa, ainda que no fundo saibamos ser verdade e que poderíamos estar ajudando alguém se levantássemos (com gentileza) essa bola. Somos legais quando concordamos sem concordar (e depois fazemos o contrário), quando fazemos algo por alguém esperando nossa recompensa, mesmo que somente emocional. Quem já teve um chefe “legal” sabe que é dureza.
Já quando somos bondosos não nos importamos com nosso reconhecimento, mas genuinamente no bem estar do outro. Ser bondoso ou gentil nem sempre é “legal” porque a outra pessoa pode não devolver na mesma moeda (retornando o bom dia ou o sorriso), mas sabemos na boca do estômago que é o certo a se fazer. Você pode ser legal, evitar um desconforto para si e deixar seu amigo com alface no dente da frente ou ser bom e avisá-lo com gentileza ou bom humor.
"Kindness is true with grace" - Christina Kisley.
2. Estabeleça limites com amor
Talvez nem o espírito mais evoluído do universo possa lidar com comentários de família. Não porque as pessoas falem coisas horríveis. Normalmente elas falam sobre o que está na cara e já sabemos. O motivo da dor é, contudo, justamente esse. Estas são as pessoas que mais amamos no mundo, e qualquer coisa que venha delas tem seu volume aumentado ao equivalente do nosso limite. Elas sabem onde dói. Como ser gentil nestas situações?
O que mais frequentemente acontece é que no momento somos pegos de surpresa, concordamos, rimos acanhados, e vida que segue. Quem nos ofendeu jamais entenderá a extensão daquela dor, porque não a comunicamos. Acabamos no chuveiro ensaiando uma resposta mal educada, que conseguimos elaborar somente horas depois. Daríamos a casa e o carro por uma máquina do tempo, e passamos meses (possivelmente até o próximo natal) remoendo a falta de ação do momento.
Para estes casos a Coaching Executiva Christina Kisley sugere a seguinte resposta (já deixa anotada): “Eu sei que a sua intenção não era me magoar, mas o que você disse e o impacto do que você disse foi bem doloroso. Então eu gostaria que você não falasse mais isso pra mim, porque eu tenho certeza de que você não quer me causar dor. Eu sei que não foi sua intenção, mas queria que você soubesse que esse foi o impacto que teve em mim”.
Kindness is a choice.
Um relacionamento saudável, segundo ela, é aquele em que sabemos estabelecer limites, compartilhando-os com os outros. Algo como ”isso está ok pra mim, mas aquilo não está ok”. Isso demonstra inclusive nossa gentileza.
E mesmo quando discordamos, é possível encontrarmos um ponto comum. O mediador Adar Cohen chama este tipo de declaração de “gem statement”. É como uma jóia que mantém a relação unida: “Mesmo quando não podemos concordar com os cuidados médicos de papai, nunca duvidei de suas boas intenções. Eu sei que você quer o melhor para ele.”
3. Encare as saias justas
Quando a conversa fica pesada ou nos sentimos desconfortáveis em determinada situação, nosso comportamento mais comum é a fuga. Mudamos de assunto. Vamos combinar que festas de final de ano não são o melhor cenário para este tipo de drama, mas é ali que eles estão. É no momento do encontro que as questões mais profundas emergem. E muitas vezes é ali também que está a cura. Quando a onda vem, muitas vezes tudo que é preciso é saber escutar, deixar processar. O que esperamos do outro é apenas um ouvido, uma conexão.
O sofrimento de outras pessoas, especialmente das que amamos, faz com que tenhamos de encarar sentimentos há muito tempo escondidos em nós. O desconforto e a fuga aparecem como um mecanismo de defesa para não encararmos nossas próprias dores e tudo aquilo com o que não conseguimos lidar. Com isso podemos estar perdendo a chance de ajudar quem amamos e a nós também.
“Se você está numa situação ou conversa com alguém, e isso trás a tona questões com as quais você se sente desconfortável, a próxima coisa a se fazer é olhar para si mesmo com curiosidade para entender o que está acontecendo”, diz Christina.
Demonstramos empatia quando conseguimos perceber uma emoção na outra pessoa, e nos conectamos com ela sem julgamentos. Mas a compaixão vai além, nos leva a fazer algo por ela. Quando não evitamos sua dor, raiva ou seja lá o que for, a olhamos nos olhos e oferecemos algo que a ajude, ainda que sejam somente os ouvidos.
4. Não vamos falar disso
Todas as famílias têm suas piadas internas e se tirarmos elas da mesa, o almoço de domingo perde a graça. A questão é ter a certeza de que todos estão se divertindo ou se a camaradagem está deixando “rastros de sangue”.
Um dos pontos que infalivelmente deixará alguém arrasado são os comentários a respeito do corpo. Na minha família sempre rimos de uma tia-avó que ao me encontrar rechonchuda na adolescência me disse: “tá gorda, tá bonita”. Naquela época, bochechas roliças eram sinônimo de saúde e beleza. Claro que para mim significavam algo diferente.
E mesmo se a intenção seja boa, o resultado por ser um pesadelo (nota para o futuro: não parabenize ninguém pela gravidez a não ser que seja claramente anunciada). Lembro de uma vez em que fiquei repetidamente falando o quanto uma amiga estava magra, dizendo que ela tinha que sair de perto de mim e outras coisas que mulheres dizem porque não saberem elogiarem-se adequadamente. Mais tarde ela me contou que estava doente e que os comentários sobre a magreza a deixavam arrasada e ainda mais assustada com o que se passava com ela.
Simplesmente não comente sobre o corpo das pessoas, mesmo com as melhores intenções. Nós conseguimos fazer piadas e comentários suficientemente interessantes com quase todos os demais assuntos do universo.
5. Arrisque-se em conversas mais profundas
David Brooks escreveu uma matéria interessantíssima para o New York Times sobre como ter conversas mais profundas. Uma de suas sugestões está em nos aproximarmos com admiração. Nos interessarmos genuinamente. Cada criatura é única e superior a nós mesmos de alguma forma. Nós só precisamos parar de falar de nós mesmos por um segundo para perceber.
“As pessoas que têm ótimas conversas entram na sala com a expectativa de se encantarem com você e fazer com que você sinta o centro de seu carinho e respeito.” David Brooks
Outra dica é escolher perguntas que abram espaço para uma conversa mais interessante. Há um tempo atrás, quando criei o jogo de perguntas para casais, me surpreendi com quantas coisas descobrimos sobre nós e nosso relacionamento, mesmo depois de tantos anos juntos. As perguntas do David me fizeram imaginar como seria uma conversa assim com meus pais ou meus irmãos (veja algumas sugestões de perguntas dele no final do post).
Segundo ele, devemos evitar as perguntas que induzam algum tipo de julgamento ("Onde mesmo você estudou?") e perguntas fechadas ("Você teve um bom dia?"), mas nos aventurar por questões que comecem por exemplo como: “Como era quando…”, “Me conte sobre aquele tempo…”, “Como você conseguiu lidar com tudo o que estava acontecendo quando…”.
“Being curious about your friend’s experience is more important than being right.” Lisa Feldman Barrett, neuroscientist.
6. Descubra o prazer de ser um bom ouvinte
Outro fenômeno conhecido de todos nós durante reuniões de família são as histórias repetidas. Especialmente os mais velhos (mas não exclusivamente) tendem a recontar a mesma sequência de eventos quase como uma tradição. O impulso natural de quem está ouvindo é um “eu sei… eu sei… e daí você…” pulando logo para o final da história.
A questão é que o que está rolando ali não é apenas uma sequência de eventos, mas uma ressignificação daquilo que foi. A cada vez que a história é contada, uma nova camada de emoções aparece, se transforma, e uma experiência traumática pode se transformar numa lembrança terna. Você, como ouvinte, faz parte desse processo de cura a partir das memórias.
Não tenha medo das pausas. Não interrompa. Não apresse. Resista ao impulso de terminar as frases. Deixe a outra pessoa no controle da experiência. Uma companhia magnética é aquela que vive a história junto com quem a conta.
“Os humanos precisam ser ouvidos antes de ouvir” Amanda Ripley.
David Brooks nos lembra que “conversas mais profundas ajudam as pessoas a se tornarem explicáveis umas para as outras e para si mesmas. Você não pode realmente se conhecer até saber como se expressa e se encontra nos olhos de outra pessoa. Uma conversa mais profunda cria confiança, o oxigênio da sociedade, exatamente o que estamos perdendo agora.”
Boas Conversas e Boas Festas!
Algumas sugestões de perguntas de David Brooks:
Em que tipo de encruzilhada ou decisão de vida você está agora?
Que compromissos você assumiu e nos quais não acredita mais?
Quem você se sente mais grato por ter em sua vida?
Que problema você costumava ter, mas agora o superou?
O que você faria se não tivesse medo?
Fontes:
The Friday Fireside with Christina Kisley and Graham Allcott - Why do we need kind leaders?
Nine Nonobvious Ways to Have Deeper Conversations
Stop Being Nice, Start Being Kind