É difícil fazer amigos depois de grande. Estou na casa dos trinta e tantos anos (não consigo acreditar que já são quase quarenta) e espero ainda me surpreender com novas pessoas fazendo parte da minha vida. E mesmo que o meu bom senso me reafirme que isso é bem provável, alguma coisa na boca do estômago me diz que não é bem assim.
A verdade é que é muito difícil competir com quem passou a infância conosco. Quem inventou histórias sem sentido, que o outro entendeu. Quem dividiu segredos, cadernos de perguntas, brincou de taco, verdade ou consequência. Difícil equiparar a intimidade de quem sentou na carteira ao lado, teve os mesmos professores, se apaixonou pelos mesmos garotos, chorou junto dores de cotovelo.
Não dá pra comparar amizades assim com as que começam depois de grandes, quando fazemos muros altos. Ficamos sabidos e passamos a falar de impostos e viagens, escondendo nossas partes mais tolas e interessantes.
Depois de estar distante por um tempo o sentimento é de estar num limbo, numa área de fronteira. De um lado do muro estão os novatos, dos quais conhecemos ainda pouco e só o que nos deixam saber pelas suas próprias lentes. Não os observamos tempo suficiente para sacarmos quem são pelos trejeitos ou pelo pequeno acervo que guardamos deles.
Do outro lado estão os antigos, dos quais a distância rouba a intimidade, o jeito fácil. Com o tempo acabam se parecendo mais com memórias do que com amigos de fato. Podemos recorrer a elas quando estamos tristes, mas nos acanhamos ao pensar em buscar o ouvido de um velho amigo como antigamente. Será que ele sabe que eu não sou mais a mesma pessoa? Como eu posso falar dessa parte da história quando ele perdeu todo o resto? Será que ele sabe que no fundo eu não mudei absolutamente nada?
Dizem que estas amizades antigas, as verdadeiras, ficam congeladas e quando nos vemos é como se o tempo tivesse passado bem pouco. Eu concordo e me senti assim muitas vezes. De todo modo, no fundo também sabemos que como qualquer relacionamento é preciso falar das cotidianices para que se possa entender os grandes dilemas.
Precisamos partilhar do trivial. É isso que fazem os amigos.
Eu penso nos meus pelas mãos. Se eu puder fechar os olhos e me lembrar de verdade como eram seus dedos, o formato das mãos, a textura da pele, detalhes das unhas, aí sim eu sei que estou recordando de um amigo. Os de mãos esquecidas ou borradas são colegas, companheiros, anjos que passaram e foram. Já com os amigos a coisa é diferente (a família entra nessa mesma categoria). Foram anos observando o segurar de xícaras de café enquanto papeávamos, anos os vendo escrever, gesticulando de um jeito exagerado histórias hilárias, anos de mãos próximas.
Se fechar os olhos agora consigo ver as mãos fortes do meu pai no volante. Cada uma das manchinhas, as veias saltadas. Suas mãos se parecem com as minhas. Meu irmão tem mãos lindas, das mais bonitas que eu já vi, com pontinhas dos dedos redondinhas e unhas bem cunhadas. Lembro dos dedinhos fofos da Michelle na infância, inclusive todos os que chegavam na sua casa eram convidados pelas irmãs mais velhas a apertá-los - “estica a mãozinha Michelle - olha só, aperta aqui, olha como são fofinhos” - elas diziam pressionando as pequenas barriguinhas que se formavam entre os ossinhos dos dedos. Hoje ela é uma adulta alta e magra. Os dedinhos fofos continuam lá, camuflados. Como um novato poderia saber disso?
Lembro na faculdade dos dedos de pontas finas e redondas da Lisa. Eram delicados como ela. Se fechar os olhos tenho um 3D perfeito das mãos da minha primeira professora, dos dedos de pontas quadradas do San, dos nós bem marcados nos dedos da mão bronzeada da Edi, dos dedos compridos e magros do Beto que abraçam tão apertado que até dói. Das mãos Su, da Rafa e da Olga, as minhas melhores amigas da escola ou da cor delicada das mãos da minha irmã, o que é bem fácil porque temos quase tudo bem parecido.
Não tenho isso com novos amigos. No pouco tempo que tivemos minha atenção estava dividida entre tentar seguir o raciocínio da história que me contavam, ver por onde corriam as minhas crianças, se faltava algo na mesa e o que eu poderia responder de volta. Acho que sei dizer a cor dos seus olhos, talvez erre se me pedir para desenhar o formato de cada rosto, mas definitivamente não sei nada sobre suas mãos. O que é uma pena.
Amigos de verdade deixam uma mistura de memórias. Táteis, afetivas, visuais. Lembramos dos cheiros, das sensações. Lembramos de quem eles eram e do que nos tornávamos na sua presença. Do que significavam pra nós. E por mais egoísta que possa parecer, amigos antigos nos lembram de nós mesmos. De quem somos de verdade.
Este vídeo (fantástico) da School of Life fala porque amigos antigos importam. Eles nos conectam com versões inacessíveis de nós mesmos. Com eles conseguimos enxergar a nossa jornada mais claramente, ver o quanto evoluímos. Ver o que um dia foi doloroso e hoje não é mais, ou mesmo aquilo que movia o nosso mundo e já não importa. "Um velho amigo é um guardião de memórias", eles dizem, completando que "lembrar como era não ser o que somos agora é crucial para o nosso crescimento", já que só assim conseguimos nos colocar no lugar do outro. Esquecemos que já fomos adolescentes, inseguros, tolos, turrões. Nossos velhos amigos sabem de tudo isso.
De toda forma espero que o tempo ainda me traga algumas surpresas. Meus novos amigos talvez nunca conheçam de fato a mesma pessoa que encontraram os que passaram por mim há décadas. Talvez a gente não tenha tempo de segurar muitas xícaras de café. Por isso minhas mãos grandes estarão por aqui, esperando.
Aos antigos, do lado mais familiar do muro, eu quero dizer que eu sei que são meus amigos mais preciosos porque poderia identificar suas mãos erguidas no meio de outras milhares num show de rock.
E que sim, desde aquele tempo tanta coisa aconteceu, que talvez não sejamos mais os mesmos. E ainda assim, de uma forma louca e inexplicável, não mudamos nadinha. Nossas versões ficaram congeladas em algum momento da nossa história. Nós sabemos exatamente o que precisamos saber um dos outros. Nós ainda estamos aqui.