Eu não me lembro de ter estado tão irritada assim antes. Na verdade estive muitas vezes, mas nunca com o Giu. Desde que nos mudamos, dia sim dia não, me pego zangada com ele. Nunca soubemos bem como brigar, então nos falta prática. A sequência é normalmente bem entediante e previsível: um pisa na bola, o outro não gosta e fala duas ou três palavras, ao que o primeiro cala, não dando oportunidades para a briga se desenrolar como deveria. Depois seguem algumas horas de uma das caras emburrada, e no ponto onde as duas caras estão assim é chegada a hora de fazer as pazes. A sequência é normalmente essa, salvas as exceções em que eu tenho que avisar a ele que estou chateada (o Giu é distraído nesse nível).
O negócio é que, sozinhos, ele virou minha única fonte adulta de drenagem para qualquer sentimento e reação. Ele agora é meu pai, minha mãe, meu chefe, meus colegas de trabalho e todas as pessoas que me tiram do sério. É pra ele que eu corro quando não sei enviar um documento para o Brasil, quando o médico diz algo estranho, quando a internet não funciona ou quando lembro de algo engraçado.
Já estamos mais tempo da vida juntos do que separados, e é estranho pensar que agora é que estamos nos conhecendo, ou pelo menos, conhecendo nossas novas versões.
Até então vivíamos nossas vidas de certa forma independentes e nos encontrávamos no final do dia para jantar. Agora estamos conectados dia e noite, como médicos de plantão, monitorando o cotidiano.
Com só ele por aqui, é de se esperar que seja o culpado por tudo. E não só pela toalha molhada ou pelo cinto da calça que está sempre na cozinha (não importa a casa onde a gente viva). Como a raiva inexplicável que a gente sente do outro durante o trabalho de parto (esta em parte justificada), é dele a culpa se tenho que sair com as crianças no frio, se a vendedora é grosseira ou se estou a 9.800 quilômetros de casa sozinha com os nossos filhos enquanto ele está em outro país.
Essa semana o Giu "se trancou" para fora de casa, com as crianças. Eu havia ido no inglês e recebi a mensagem assim que cheguei. Este se tornou um fato importante dado que: levo 1 hora de tran para ir e 1 hora para voltar, que é meu único compromisso e possibilidade de falar com outros adultos, que ele viajaria no dia seguinte e eu teria que faltar novamente e que era a última semana do meu curso. Voltei na dúvida se estava mais aflita porque as crianças estavam fora de casa, num horário em que eu sabia que o Théo estaria morrendo de fome ou se porque ainda não tinha decidido como exatamente iria matá-lo.
Essa semana vi um filme em que falavam que "we like because, and we love despite". Esta é quase frase de William Faulkner, romancista, que devia entender bem de amor. Nós gostamos de alguém porque, e amamos apesar de.
Gosto do Giu porque ele é gentil de um jeito que eu nunca serei. Ele percebe alguém precisando de ajuda a quilômetros de distância e deixa de lado o seu para fazer o do outro. Gosto porque ele tem uma presença que cativa, que quebra o gelo, ilumina, salga. É uma pessoa que não passa despercebida, de um jeito leve. Ele tem um jeito especial com as pessoas, e se vê um conhecido na rua troca de faixa, buzina, põe a cabeça por fora e acena. Tipo um golden retriever, que não tem quem não goste.
Gosto porque ele tem um repertório que completa o meu. Porque ama aprender, e me ensina algo cada vez que a gente conversa. Porque é genuinamente bom. Se emociona com coisas simples e nos coloca sempre em primeiro lugar em tudo o que faz. Gosto porque por mim ele fez as coisas mais absurdas. Porque entrou num hospital depois da minha cirurgia quando eu tinha 18 anos e não desmaiou (ganhou minha mãe aí) e porque entrou mais milhares de vezes novamente, duas delas saindo com os nossos filhos no colo.
Gosto porque ele é um pai maravilhoso. Que cuida, dá banho, troca fralda, conta história e se preocupa insanamente. Gosto porque é vergonhosamente babão.
E amo ele apesar de ser distraído, esquecido, enxerido (se sentar perto dele no restaurante saiba que sua conversa será ouvida, assim como a das 4 outras mesas ao redor, simultaneamente). Amo ele apesar de ficar insuportável quando viaja (lê chatô, como dizemos em francês). Por ficar com sono no sofá e por repetir mil vezes no domingo que precisa fazer algo na quarta.
Amo até mesmo o fato de querermos nos colocar em primeiro lugar, antes das crianças, e nunca conseguirmos (fica a intenção).
Uma época me preocupei por achar que éramos amigos demais. Aquilo não poderia dar certo, como eu poderia me casar com o meu melhor amigo? Não deveríamos nos sentir como alguém que desvenda um mistério ou como quem tenta desprogramar uma bomba relógio? Acho que seria cansativo. Hoje vejo como nossa amizade é importante. O quanto amamos conversar, passar tempo juntos e me surpreende o fato de ele ainda achar graça nas minhas piadas.
A primeira vez que eu vi o Giu eu tinha 13, quase 14 anos. Ele estava apresentando uma peça de teatro adolescente, como boas vindas aos novos alunos do ensino médio. Era meu primeiro dia de aula na nova escola.
Eu lembro de ter visto ele e pensado: Meu Deus, é ele. E foi.
Hoje, quando alguém conhece os nossos filhos é esperado que dê risada e comente algo sobre a ingratidão de eu tê-los carregado por nove meses para não terem absolutamente nada meu. São a cara Giu. Eu sempre sorrio e respondo: "Pois é, fazer o que? Eu até que gosto dessa cara".