No dia 03 de setembro de 2016 eu comecei a correr. Era algo novo e desafiador pra mim. Levantava mais cedo e a meta era correr de 3 a 5 km por dia. No dia 31 de dezembro do mesmo ano eu chegava no meu objetivo: completar 100 km somando todas as minhas corridas matinais. Naquele dia tive que correr / caminhar 12,64 km para cumprir minha meta e lembro de ter chegado correndo e pulado na piscina de roupa e tudo para comemorar meu feito. Que memória boa!
Três anos depois, no dia 04 de setembro de 2019, eu teria caminhado mais que este tanto - 116,67 km - em apenas 6 dias.
Dizem que o caminho começa bem antes e acho que isso é verdade para todos que se propõe algo assim. O meu talvez tivesse começado por aquelas andanças, mas acho que ele se fez real mesmo só na véspera da minha partida.
Eu não sabia porque queria fazer o caminho. Mesmo, de verdade. Eu havia lido o Diário de um Mago na adolescência e a vontade de alguma forma ficou comigo. Ainda que eu não me lembre de nada além de uma aura mística quando penso neste livro.
Acho que eu queria experimentar como seria estar sozinha depois de tanto tempo acompanhada. Saber como seria a sensação de acordar e só ter uma única tarefa para o dia: caminhar. Coisa de que sempre gostei, que meu pai me ensinou.
Queria viver alguns dias sem concessões, sem levar em consideração qualquer outra vontade ou limitação que não as minhas. Quando se é mãe tudo o que se faz é considerar outras necessidades como mais urgentes que as suas. Queria poder escolher se preferia estar sozinha ou acompanhada. Quando parar e quando seguir. Que horas comer e outros luxos simples.
Pois bem, o caminho está na minha lista há alguns anos, mas sempre havia algo que passava na frente. Como quando a viagem estava planejada e descobri que estava grávida, por exemplo. Sempre havia a questão de como organizar a logística da vida com as crianças e outros detalhes práticos de tempo e agenda. E ainda que estivesse novamente na lista para o ano, eu só resolvi mesmo fazê-lo cerca de 2 meses atrás.
Olhei o calendário, havia só uma semana possível dentro do período de tempo ameno na Galícia e nossos compromissos aqui. Fiz umas contas de padeiro e os meus freelas dariam para a pagar a conta. Comprei a passagem. Passei uma manhã reservando o que precisava ser reservado e pronto. Em menos de dois meses eu estaria lá.
Dia 13 de julho fiz meu primeiro treino, com meu tênis de corrida, aquele de 2016. Andei 14 km e depois do décimo comecei a sentir a perna. Deveria ter parado, mas continuei. Me machuquei. Saí com o tênis errado, fiz burrada. Depois disso sentia dor a cada passo.
Procurei o médico, fiz fisioterapia, descansei, tentei acupuntura, passei cremes, tomei anti-inflamatórios, tentei voltar aos treinos. Mas o mal estava feito. Nunca havia sentido dor para caminhar e agora isso... Consegui sair só 5 vezes para treinar, e alguns destes treinos foram só 5 km.
Na acupuntura havia sido avisada da possibilidade de tentar outra técnica caso necessário. Uma de alívio mais rápido da dor - "Dr Tan's Balance Method". Estava um pouco apreensiva com essa possibilidade, porque havia lido que era mais dolorida, com pontos nas mãos e pés. Olhei no app da clínica para marcar e vi a foto do Joey, o acupunturista. Minha primeira reação foi "eu não vou não". Na foto ele aparecia com cabelos longos e negros, barba e cavanhaque. Vestia um blazer e tinha os braços cruzados. Me pareceu um daqueles mágicos que se prendem com correntes num tanque com água, sabe?
Não encontrei hora pelo app e logo ele me ligou. Me senti melhor ouvindo a sua voz e, lembrando da urgência da dor, resolvi ir. A sua impressão na vida real era bem diferente da foto. Estava de chinelos, roupas soltas e o cabelo já um tanto grisalho preso no topo da cabeça com um coque. Tinha uma fala mansa que logo me distraiu conversando sobre viagens pela América do Sul. Sorria calmo e não desviava o olhar ao falar.
Ele disse que iria medir minha pulsação e poderíamos começar o tratamento. Deitei relaxada na maca. Eu estava tranquila. Ele tocou o meu braço, escutou o pulsar das veias por dois ou três segundos e me olhou assustado: "Está tudo bem? Estou sentindo muita coisa aqui".
Nessa hora eu não consegui segurar. Comecei a chorar do nada. Uma onda de calor, tristeza e angústia saiu na forma de um choro de criança. Como se um enxurrada de coisas guardadas tivessem estourado uma comporta e agora alagavam todo o lugar.
Ele ficou desconcertado e eu sem saber explicar. Se apressou em buscar lenços em outra sala, mostrando que aquilo era algo fora do usual. Eu estava nervosa pela viagem do dia seguinte, claro, pela proximidade do momento da despedida das crianças, mas tinha algo mais. Ele falava alguma coisa sobre ser bom deixar tudo aquilo vir para a superfície, e eu só me sentia aliviada por tirar de mim o que estava guardado desde o último ano.
Para ele agora parecia fazer mais sentido que a dor tivesse um fundo emocional. Me explicou que o ponto que eu indicava coincidia com o meridiano usado para tratar stress. O resto do tratamento se seguiu tranquilo como os outros que eu já havia experimentado, a exceção de ele pedir para eu parar de falar um pouco e só relaxar.
Tudo isso até ele posicionar uma agulhinha no meu pé. Dei um salto na maca. Uma dor amorteceu a planta do pé e acordou conexões nervosas que seguiam como milhões de carros numa rodovia de alta velocidade partindo da parte de cima do pé, seguindo pelo lado externo da perna até o alto da coxa. "Este é o ponto da ansiedade e stress", ele disse sorrindo. Eu declarei que essa agulha ficaria ali pra sempre.
Senti esta "estrada movimenta" por mais uns 20 minutos. Saí de lá com mais dor do que entrei. E me lembro de pensar pedalando pra casa que era isso. Havia feito tudo o que estava ao meu alcance. Não me machuquei intencionalmente e havia feito todo o possível para melhorar. A viagem seria no dia seguinte e como nada mais poderia ser feito, só me restava aproveitar. Com ou sem dor faria o caminho, e o faria da melhor forma possível.
Quando me despedi ele disse: "Surrender".
"Aproveite o caminho. Tente sentir com o coração, não tanto com a cabeça" - "enjoy" - ele completou. Essas palavras foram comigo durante todo o tempo. "Sinta com o coração" eu pensava caminhando pelo aeroporto, seja lá o que isso queria dizer.
A dor passou algumas horas depois da consulta. Estava deitada, senti algumas fisgadas fortes e ela se foi. Senti o lugar durante a caminhada, mas era mais como um lembrete do que de fato uma dor.
Ria sozinha caminhando enquanto pensava em marcar uma nova consulta na volta e ouvir a recepcionista responder: "Joey? Não... não tem ninguém com este nome aqui". Ou algo como: "Havia sim um Joey, mas há mais de 50 anos atrás" hahahah!
O caminho começa mesmo antes. Às vezes muito tempo antes, num sonho adolescente sem nenhuma vontade de entender a vida. Ou três anos antes, com uma meta despropositada na cabeça. Ou quem sabe na véspera, com uma dor na perna misteriosamente conectada ao coração.
Independente da forma como começa, o mais importante é o jeito que ele escolhe ficar. Mais do que das passadas, quero me lembrar do Joey, e do seu jeito estranho de me fazer desenferrujar o coração.
Quer saber mais sobre o Caminho? Dá uma olhada aqui para ver como foi por lá e aqui para informações mais práticas sobre a viagem.