A pergunta que mais ouço ultimamente é "E aí? Está valendo a pena?". Oh perguntinha difícil. Para começar a responder é preciso comparar com alguma coisa. Ou seja, "o que eu tenho agora é melhor ou pior do que eu tinha até então?". E é aí que a coisa complica.
Uma vez, num encontro de trabalho, ouvimos uma história sobre rasgar o samba (amigos lembrarão). Não sei se a história é verdadeira (busquei e o mais perto que encontrei foi "Roupa rasga e Mulher Filé mostra demais em noite de samba") mas vale pela metáfora. A história conta que na hora de criar o samba enredo da escola de samba para o carnaval, os compositores escrevem suas canções e as apresentam a uma banca, que então vota e escolhe a vencedora. Depois disso, existe uma cerimônia em que os perdedores literalmente rasgam seu samba na frente de todos.
A perspectiva de uma cena assim parece violenta. Rasgar o que construí na frente de todos. Admitir minha perda publicamente.
Na realidade o sentido é outro. Rasgar o samba ali significa que uma decisão foi tomada. Independente das razões, escolhemos, e a partir de agora vamos todos cantar aquele samba. Não o samba do outro, com um acorde meu e o título de alguém, que não tinha relação com o tema mas era bonito demais para largar. Não, todos cantaremos juntos o samba escolhido, sem olhar pra trás. Essa será nossa música a partir de agora. É a mesma metáfora de queimar a ponte, mandar a jangada embora ou qualquer coisa que o obrigue a seguir adiante.
Antes de virmos, fiz um plano de contingência na minha cabeça, estabelecendo rotas de fuga para todos os lados. Como estava grávida combinei com meus diretores que me daria a chance de experimentar a vida aqui durante a licença maternidade. Se tudo desse errado, em cinco meses eu voltaria e o pior que poderia acontecer seria passar minha licença na Europa. Para a casa eu pensei em só virar a chave na porta e deixar tudo lá, estacionado até que voltássemos. E por aí vai. É claro que nada disso deu certo e que para funcionar era preciso encarar o medo da mudança e fazer as coisas em definitivo.
Não considero ainda que vivo na Holanda. Estou vivendo na Holanda e esse gerúndio é suficiente para explicar o sentimento.
Até então eu tinha diversas identidades. Eu era a filha dos meus pais, a funcionária de uma empresa, a líder de um time, a aluna de uma escola. E tantas outras personas que fui colecionando ao longo da vida. Todas elas se perderam em algum lugar, e como não construí para mim nenhuma outra nova, me sinto na borda de algo que ainda não sei dizer o que é. Onde tudo nos soa familiar lutamos para sermos os melhores, aqui a aspiração é ser a média.
E essa não é só a minha história. É a história de todos que estão longe de casa. Agora me lembro dos amigos que vinham de longe e que não tinham companhia nos finais de semana ou só queriam saber onde encontrar uma boa costureira. Estava ocupada demais para sacar que precisavam do trivial.
Às vezes me pego pensando se um dia voltarei a ser o que era. Se será possível retomar do ponto onde paramos. Escrevi para uma amiga essa semana sobre isso lembrando de um poema do Robert Frost. Ele conta que no caminho haviam 2 estradas, ele tentou ver de longe onde iam dar. Como não conseguia, escolheu a menos pisada, onde a grama estava mais verde, deixando a outra para outro dia. Mesmo sabendo que, como uma estrada leva à outra, ele possivelmente nunca mais voltaria ali. É assim que me sinto.
Não sei dizer se vale a pena, se é melhor ou pior, porque simplesmente são coisas diferentes. Como diriam nossos professores, é preciso comparar banana com banana. A realidade não existe de fato, somente nossas memórias, e temos a tendência de romantizá-las. Esquecemos da cara feia do chefe, do trânsito e de qualquer coisa que nos incomodava e lembramos só do que era bom.
Longe de mim desmerecer o que deixei pra trás. Amo cada segundo e nem posso começar a falar da questão da distância das pessoas. O ponto é que parece que o passado e o futuro são sempre mais interessantes que o agora. Tenho certeza que mudanças como estas não acontecem porque queremos mais qualidade de vida, educação melhor para os filhos, um idioma a mais. Essas coisas podem até vir a reboque, mas não sem muito esforço (que poderia ser feito aí também).
Vejo agora que a vida poderia ter sido bem mais simples se eu tivesse rasgado meu samba mais vezes. Se para cada escolha eu guardasse a antiga com carinho, agradecesse pelos serviços prestados e seguisse em frente.
Eu não estaria escrevendo este texto, por exemplo, se não tivesse me permitido rasgá-lo. Acredito que fazemos este tipo de loucura como uma forma de buscar conexão: conosco, com os outros, com Deus. E se tudo der certo, valorizar ainda mais o que importa, como o presente por exemplo. E se o hoje será a saudade de amanhã, que coisa mais maluca seria não aproveitá-lo, não é mesmo?