Essa semana participei de um workshop online da School of Life Amsterdam com a minha musa (hahah) a Liz Gilbert e não quero esquecer os insights que vieram deste tempo, então aproveito para registrá-los aqui. A principal ideia que ela trouxe é de uma vida sem propósito. Isso mesmo. Aguenta aí comigo que eu vou tentar dar um sentido a isso.
A autora lembra que o nosso tempo é marcado por uma certa obsessão pelo propósito (e isso todos nós já meio que entendemos). Supostamente temos uma oferta única, algo a oferecer, e nossa tarefa é descobrir este algo e então aperfeiçoá-lo tanto quanto possível, “master it”. Neste ponto vale citar (já falei bastante sobre isso em outros textos) que com tantos recursos disponíveis, se não formos capazes de desempenhar nosso máximo potencial neste área temos somente a nós mesmos a culpar.
Feito isso, o próximo passo natural é monetizar nosso dom (lembra de Confúcio? “Trabalhe com o que você ama e nunca mais precisará trabalhar na vida”). É preciso transformar o propósito em algo concreto e encontrar prazer no trabalho a partir dele. O termo “monetizar” também esconde uma grande expectativa financeira como sub-produto, uma vez que é meu dom único e eu o aperfeiçoei tanto quanto possível, subentendo que deveria fazê-lo muito bem (e encontrar felicidade sempre no desempenho da minha função), o que me levaria a ser incrivelmente bem sucedido.
Próximo passo: gerar oportunidades para outras pessoas. Meu dom deve ser usado para o bem maior, então preciso espalhar estas sementes, capacitar, informar, evangelizar. Preciso colocar meu dom a serviço de um bem maior, preciso deixar um impacto no mundo, que nos leva ao final desta equação: o desejo (inconsciente ou não) de deixar um legado. Talvez isto tenha mais a ver com a nossa mortalidade e o medo de sermos esquecidos, mas vamos deixar este papo para outra hora.
A esta altura imagino como você se sente lendo isto, e participando deste tempo. Da minha parte é como se eu estivesse debaixo de um daqueles caminhões que despejam toneladas de cimento. É muita pressão. E segundo Liz, um pouco contra-intuitivo.
Nossos ancestrais aparentemente não pensavam desta forma, mas viam cada pessoa como parte de um sistema maior. Além disso, matematicamente parece que a conta não fecha. Parece caótico pensar que cada um dos 7,8 bilhões de pessoas têm um dom único, que individualmente e coletivamente é capaz de mudar o mundo (imagine 7,8 bilhões de pessoas de certa forma “forçando” sua agenda).
É claro que somos únicos, e temos dons, mas a ideia por trás do sistema que descrevi acima é cruel (sem dúvida parte da lógica capitalista da qual fazemos parte), e certamente arrogante. Para sermos honestos, nós não sabemos realmente o que estamos fazendo aqui (neste mundo, eu me refiro). Para que existimos exatamente, ou que raios está acontecendo. Presumir que temos o controle sobre estas coisas e temos as respostas é audacioso.
“I don’t know what I’m doing and it’s the not knowing that makes it interesting.” Philip Glass
Quando saímos da nossa casa pela manhã, apesar de imaginarmos o contrário, não temos a menor ideia do que nos espera. Nós simplesmente não sabemos. Não temos escolha. O mundo poderá nos oferecer algo a contra gosto e a única coisa que poderemos controlar é a nossa reação àquilo que se apresenta. Liz usa uma expressão para se colocar neste estado de curiosidade quanto algo inesperado (e normalmente ruim) aparece: “Que interessante…” (que pode ser usado normalmente no lugar de “que m*, na minha humilde interpretação).
Então a pergunta é:
“Qual seria a coisa mais interessante que você poderia fazer este ano se você acreditasse que a sua vida não tem um propósito?”
Por favor, pense por alguns minutos antes de ler o resto do texto.
.
.
.
Vou contar aqui algo bem íntimo, porque talvez ajude no seu processo de “não propósito em 2023”. Depois de alguns minutos de silêncio me veio à mente a seguinte ideia: eu não tentaria mais educar meus filhos, ou fazer a coisa certa, eu só me divertiria com eles, aproveitaria a sua companhia.
Sei que parece totalmente irracional (e impraticável, pra dizer o mínimo), mas esta ideia denunciou meu estado atual de tensão. Eu tenho pensando tanto em como posso ser melhor pra eles, se tenho falhado aqui e acolá, que livros deveria ler e que tipo de ajuda deveria buscar para ter certeza de que estou fazendo o possível para que eles sejam pessoas boas. Para que tenham um bom futuro. Este é o centro do meu propósito de vida neste momento, para usar o termo e simbologia deste texto. Mas quem sabe a fixação no tema só me afaste dele (também já falei sobre a hiperintenção aqui), perdendo de vista o que realmente importa: a minha relação com os meus filhos.
Me libertar do propósito me permitiria viver o que eu desejo afinal - e não entenda aqui algo como “não ter um propósito para encontrar meu propósito”, a ideia é esquecer que ele existe, ou de fato dar a isso alguma importância.
Da mesma forma que o medo ou atenção excessiva sobre um tema (hiper-reflexão) faz acontecer aquilo que se teme (ansiedade antecipatória), uma intenção forçada torna impossível aquilo que se deseja muito (hiperintenção). Logoterapia
Outras coisas que surgiram no grupo como exemplos:
>> eu passaria mais tempo na natureza
>> eu faria aulas de dança
>> eu escreveria só por diversão
>> eu passaria tempo brincando com as crianças
>> eu teria um cachorro
Para Liz Gilbert, quando forçamos algo para encontrar este tal propósito e servir o mundo com o produto dele, estamos na verdade interrompendo uma dança linda que na realidade já está acontecendo, e da qual fazemos parte sem perceber. Ela pergunta ainda quão escravamente queremos nos comprometer a esta cultura, que diz que devemos estar sempre atualizados e melhorados em tudo? Uma cultura que nos adoece a medida em que colocar uma camada de açucar (felicidade tóxica, busca do propósito e realização plena) ao redor de algo que está estragado e cheira mal (individualismo, egocentrismo, burnout).
“The truth is: you don’t have a life, you are life.” — Eckhart Tolle
E se tudo isso for mais simples do que parece? E se nunca nos dermos de fato conta de qual é o motivo, mas vivermos pela intuição ao invés de pelas metas? E se estivermos mais abertos e curiosos? E se nosso propósito for simplesmente estar no momento certo, na hora certa?
E isso nos leva à segunda pergunta:
Pense num momento em que você estava no lugar certo, na hora certa, e sem planejar algo aconteceu ou você viu algo belo?
.
.
.
Algumas respostas do grupo:
>> Uma vez ganhei um voucher para um sanduíche extra e dei para uma pessoa na rua.
>> Da janela do meu apartamento vi um incêndio, e fui a única pessoa a chamar os bombeiros.
>> Eu percebi uma criança sozinha no ônibus, a mãe desceu e ele ficou pra trás em silêncio. Eu gritei e corri para avisar o motorista.
>> Eu brinquei por uma hora com uma criança no trem enquanto a mãe dormia.
>> Eu vi uma revoada de pássaros, se entrelaçando sobre a minha cabeça numa dança linda.
E a história engraçada da Liz:
O trânsito estava parado, e quando percebi o motivo vi que mais ou menos 10 pessoas tentando pegar um cachorrinho branco que corria de um lado para o outro da rodovia. Eu já tive cachorro e sabia exatamente o que fazer, ao invés de correr na direção dele eu corri dele, e ele instintivamente correu atrás de mim. Eu rolei na grama e ele veio brincar, então agarrei a sua coleira, e que ele mordeu várias vezes as minhas mãos. Eu estava absolutamente preparada para isso, porque nos últimos meses cuidei do cachorro da minha amiga, que está com câncer, e ele me mordia o tempo todo. Estava acostumada com isso. Tudo na minha história me preparou para aquele momento.
E se o propósito de uma vida (ou pelo menos um deles) fosse alimentar aquela pessoa com um sanduíche extra? Nós não entendemos a dinâmica de todo este universo e o seu desencadear de acontecimentos. Isso não seria suficiente? E não seria suficiente também viver sem saber?
Eu não sei como isso chega até você neste começo de janeiro, quando fazemos tantos planos, mas para mim, ainda que numa narrativa imperfeita, isso vem trazer alívio. Por hora eu não preciso de todas as respostas (ou mesmo da perfeição). A vida criativa, ou mesmo a vida, não é medida com base no que produzimos, mas nas nossas experiências. A vida por si só já é uma obra de arte, e se pensarmos bem, as pessoas que mais admiramos não são aquelas sobre quem lemos nos best-sellers. São pessoas que não deixam um legado tangível, que não produziram algo que mudou o mundo, mas que mudaram o NOSSO mundo. E fizeram isso meio que sem querer.
Este é realmente um tempo interessantíssimo para se estar vivo. E é o nosso tempo.
Feliz 2023!
Se você quer ler mais sobre o assunto, meu papo-cabeça completo está no livro Ser Humana, reflexões sobre o tempo, carreira, maternidade e tudo mais que nos faz valentes e imperfeitas. Link aqui.